7.12.16

O Arrumador Luso







Extingue-se tanta espécie por este mundo fora e não se extingue a espécie do Arrumador Luso!

Não consultei qualquer especialista em investigação nestas matérias, mas aposto que esta espécie é, a léguas, a mais resistente de todas as demais da fauna portuguesa. Confio apenas no meu poder de observação, que faço diariamente, enquanto tento fintar os vários espécimes arrumadores que deambulam na frente da minha máquina, e extrapolo. Concluo, com muita segurança até, que quem dera ao Lince Ibérico estar tão de pedra e cal como o Arrumador Luso!
 

O Arrumador Luso perpetua-se há décadas e constato que resiste a todas as intempéries, crises económicas, reorganizações urbanas e até à redução da taxa de natalidade. Alvitro até que, perante catástrofes e conflitos mundiais, o Arrumador Luso há-de lá ter geneticamente gravada uma forma de se manter em quantidade abundante, e até mesmo de se reproduzir em maior número.

Quando está sol, envergando boné de pala virado para o lado ou para trás - e nunca para a frente pois isso é coisa para presas de espécies protegidas - o Arrumador Luso surge por entre as esquinas das tais máquinas já estacionadas, de porte enérgico animado pelo sol. Imbuído dessa energia, lá vai ele esbracejando como se Darwin já tivesse previsto que esta espécie, um dia, se sobreporia à do Polícia Sinaleiro, enviando ordens aos condutores-presa que nunca conseguiriam estacionar as suas máquinas não fora a mestria do experiente Arrumador Luso para os guiar. Repare-se que o Policia Sinaleiro é actualmente uma espécie protegida, que apenas se pode encontrar em áreas delimitadas, como junto à ponte D.Maria, no Porto, ou em Caneças, mesmo lá no meio da terra, e dizem que há um em Lisboa mas eu nunca o vi. São em tão escassa quantidade que qualquer Arrumador Luso os consegue contar sem o recurso aos seus próprios dedos. Se chove, cauteloso pela sua sobrevivência, o Arrumador Luso recolhe à sua toca e lá permanece enroladinho até que os raios de sol o voltem a chamar. Relembro que estes arrumadores tentam sempre que as suas tocas sejam desconhecidas para evitar ataques de espécies que possam ameaçar a sua existência, tais como Fiscais das Finanças ou Procuradores do Ministério Público.

Nas crises económicas o Arrumador Luso surge reforçado. Apesar de se subtrairem os condutores a circular pelas ruas, ele multiplica-se. Na verdade, nessas épocas, embora por um lado se observem menos presas, por outro lado elas são mais fáceis de caçar; numas vezes em troca de habilidades e noutras simplesmente porque esta é uma espécie que há que preservar, levando a que as presas se lhes entreguem a troco das suas palavras falaciosas.

As reorganizações urbanas, até hoje, não foram suficientes para afectar a presença do Arrumador Luso no habitat citadino. Quando abundavam no Santa Maria, vieram os parquímetros e os parques pagos e logo o Arrumador rumou para o Rego e para a Praça de Espanha. Quando abundavam na Feira Popular, vieram os buldozers e fecharam aquilo, obrigando o Arrumador a mais uma manobra nómada instalando-se nas noites de Santos e das Docas. Quando acabou a Expo, época em que escasseavam arrumadores em função das reais necessidades do ecossistema, eis que, a conta gotas e depois a jorros, foram surgindo circos e festivais a abarrotar das tais presas. Note-se que este tipo de habitat não escasseia - o Festival - pois apresenta-se imune a apertos de cinto, já que há sempre a lata no fundo do roupeiro onde, durante o ano, as presas guardam as pretas para amealhar para a manutenção desse tipo de habitat. Ai, sim, que o festival é que lhes anima o ano quando ele vai a meio! Assim, quando a coisa do ânimo já vai em esmorecimento em queda livre, vem o fresco festival e tudo anima e reanima até ao Natal!

Mas o que realmente tenho mais dificuldade é em explicar a subsistência do Arrumador Luso quando já nem nasce uma presa criança por cada par de progenitores. Será porque essa espécie acopla menos e por isso sai mais à rua nas suas máquinas? Talvez... Trata-se ainda de uma hipótese porque a minha observação é escassa nessa matéria.

E assim passam os tempos e eu, fazendo parte dessa espécie de presas, tenho de ir sobrevivendo à sobranceira sabedoria do Arrumador Luso para me dizer que é mais para trás ou para a frente, quando só posso andar para trás ou para a frente; para me dizer que é à direita quando não consigo vislumbrar nenhum lugar à esquerda; para me dizer que venha venha venha mesmo que eu indo me espete em qualquer lado; e para me dizer se devo ter ou não ter espaço para sair da máquina pela minha porta ou se devo contorcer-me até ao banco do pendura para sair pela única que abre pois, caso contrário, ele perde uma caçada extra.

Mas tenho uma esperança. Uma, não! Duas, até, e em simultâneo! Com a chegada das tais máquinas "self-driven", acabam-se as presas já que os condutores deixam de o ser e os sensores electrónicos da máquina não têm boca, olhos nem carteira. 


Mas eu não desejo mal ao Arrumador Luso e não quero que lhe falte alimento nem abrigo. E, por isso, creio num futuro em que esta espécie recolhe as moedas que seriam para o parquímetro, e dá uma percentagem à EMEL. Pelo seu lado o Emílio (ou sapo, para outros), passa a fiscalizar os arrumadores em vez de multar a presa.

Assim, tudo se resolve sem prejuízo para o bem-estar de qualquer elemento do ecossistema. Assim, o Arrumador Luso apenas cobra e já não dá palpites nem faz aquele ar ameaçador de quem vai riscar a máquina a toda a volta, caso a presa desprotegida não se lhe entregue de peito aberto.

Prevejo que, desta forma, tudo evoluirá em harmonia
(aposto que também estava previsto pelo cientista): a presa ascende a um estado onda paga à mesma mas, ao menos, não é tão acossada; o Emilio também sobe na cadeia passando para um estadio mais complexo, onde passa a predar o Arrumador em vez da presa da base da cadeia alimentar; o Arrumador Luso evolui para a variante em que já não esmifra a paciência à presa mas garante, mais uma vez, que não se extingue.

By Dora P 
após ser acossada por um Arrumador Luso

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