Decidido, esse Outono seguia já
Novembro adentro vestido de Primavera. Vaidoso, havia despido os seus mantos algodão
cinza, engalanados de gotas suspensas, e vestido um manto azul brilhante
bordado a raios de sol. Cá em baixo, os campos verdejavam sob os montes de
folhas douradas e dançavam harmoniosamente ao ritmo suave da brisa que soprava,
bailando entre muros desgastados pelos anos de abandono.
A estrada é agora mais estreita do
que nunca, o asfalto subiu e os muros encolheram como prova das décadas
decorridas. Na maior parte das vezes, o presente, quando se torna passado, tem
esta sina de ser engolido pelo futuro.
O portão já não tem porta; o tempo
fê-lo evaporar. O caminho de areia e pedras foi submerso; a teimosia da
natureza inundou-o. A camioneta onde o meu avô transportara as suas obras e
habilidades, já não está estacionada ao largo. Os montes de desperdício,
sepulcro do trabalho do passado, escondem as formas que os meus olhos anseiam
vislumbrar. O tanque de lodo alvo como neve, que tanto me fascinara em criança
pelos perigos que encerrava, já não existe. Como parece já não existir a
figueira que outrora fizera as honras à entrada.
- E a casinha? A casinha da oficina?
Sugaram-na as décadas também? – Pergunto com saudade do tempo em que visitar o
Vô Quim, no local do seu ofício, era o meu programa favorito.
- Vê! Lá ao fundo. A vegetação cresceu
tanto que quase a sepultou. – Suspira a minha mãe.
E ela lá está! O tempo quase a
devorou, mas ainda restam laivos de telhado e janelas aos quadradinhos, por
entre os fios densos e imensos de vegetação. Ao seu lado, uma árvore gigante ergue-se
a uma altura inimaginável, surreal, ao mesmo tempo que a imensa folhagem se
expande iluminada pelo sol, formando um halo de luz e magia que sai de uma
varinha de condão.
É nesse momento que volto a ser
criança, guiada pela grandiosa nogueira que me aguça a perceção de que a
dimensão do que nos rodeia é inversamente proporcional à nossa idade. E hoje, e
aqui neste lugar que parece acabado de sair do pincel do artista, tudo me
parece enorme!
A tal nogueira cresceu tanto que se
tornou incontáveis vezes mais alta do que a casinha; o quintal é tão amplo que
parece infinito; o silêncio é tão profundo que parece que nada existe para além
daquele cenário; e a saudade é tão gigante que já não se chora; já só há lugar
às mais belas recordações.
Corro em passos pequenos e
saltitantes pois os pulinhos de alegria que o meu coração dá não me deixam
manter os pés à mesma distância do solo. Lá ao fundo está ele. Os braços
longuíssimos abertos à espera de me abraçar, as mãos enormes que não veem o
momento de me rodopiar no ar, os olhos que sorriem tão intensamente que mesmo
lá longe já me fazem saber o quanto ele me ama; com aquele amor especial que só
os avós muito especiais nos sabem dar. Aquele amor paciente, sem pressa, que
escuta e que contempla porque já sabe que o tempo não corre devagar e, por isso
mesmo, os pequenos momentos têm de ser grandes.
O meu avô era o avô mais lindo que
eu jamais conheci. E não era por ser o meu; até porque eu bem sei que nós
achamos que os nossos são sempre os “mais-tudo”. Era porque tudo no meu avô era
mesmo muito bonito! O seu porte alto, escorreito, de passo sereno mesmo quando
estava apressado, de gestos brandos mesmo quando estava agitado, de voz quente
mesmo quando os momentos exigiam frieza. O rosto aquilino de belas proporções,
os olhos de mar e raios de sol, e os cabelos de algodão doce, sempre bem
alinhados. Até as luvas e as galochas que usava no trabalho pareciam de festa
quando o meu avô as envergava. As mães das minhas amigas, sempre que viam o meu
avô pela primeira vez, diziam que parecia um galã do cinema dos seus tempos. E
eu enchia o meu peito de orgulho porque sabia que esta seria a sua beleza maior
não fora o seu supremo encanto interior tão mais arrebatador.
- Olá minha neta querida! Que bom
que me vieste visitar! Como foi o teu dia de escola? – Diz-me o meu avô por
entre mimos e sorrisos.
- Foi muito bom, Vô Quim. Hoje, na
escola, esbocei um desenho aos quadradinhos em que estavas na oficina a fazer
uma linda mesa de pedra que iria enfeitar a casa de Jesus. Foste, então,
entregá-la e disseste-Lhe que era um presente feito por ti, porque querias que
Ele tivesse uma mesa bonita onde pudesse escrever os desígnios do mundo. Jesus,
agradecido, deu-te em troca uma vida mais longa do que a de todos os homens
para que pudéssemos fazer companhia um ao outro, enquanto vivêssemos. E assim nem
eu jamais teria de me despedir de ti nem tu de mim. Ainda não o acabei mas não
vejo a hora de to mostrar!
O Vô Quim fitou-me emocionado,
abraçou-me, e após um momento de terno silêncio disse-me:
- Sabes, minha querida? Vou decerto
adorar o teu desenho quando mo mostrares, mas não sou só eu que vou ter esse
presente. São todos os avós que amam e partilham com intensidade as suas vidas
com os seus netos. Nunca terás de te despedir de mim nem eu de ti. Eu viverei
sempre perto, mesmo quando estiver longe: umas vezes perto dos teus olhos;
outras à distância do teu pensamento; e em todas dentro do teu coração.
- Que bom, avô! – Exclamei aos
pulinhos, enquanto o abraçava, como não podia deixar de ser, vinda a exclamação
de uma neta tão irrequieta. - Vamos fazer qualquer coisa para festejar este
momento! Vamos juntos apanhar uns figos e tu ensinas-me a abri-los. Assim,
sempre que eu comer um figo vais estar perto de mim, no meu pensamento.
- Excelente ideia, minha linda!
Vamos que ela deve estar desejosa de adoçar a nossa boca. – Brincou o meu avô.
E lá me vi eu de mão dada com o meu
avô “mais-tudo”, até junto da figueira que naquele momento me pareceu tão
pequenina que me fez voltar ao presente.
Movida pela saudade que pesa e
arrasta o passo, deixo para trás a casinha, percorro os campos dançantes até à
saída, passo pelas árvores carregadas de memórias, despeço-me daquele momento
tão especial e sinto no coração o meu Vô Quim mais perto do que nunca.
By Dora P
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