3.12.16

Vô Quim






Decidido, esse Outono seguia já Novembro adentro vestido de Primavera. Vaidoso, havia despido os seus mantos algodão cinza, engalanados de gotas suspensas, e vestido um manto azul brilhante bordado a raios de sol. Cá em baixo, os campos verdejavam sob os montes de folhas douradas e dançavam harmoniosamente ao ritmo suave da brisa que soprava, bailando entre muros desgastados pelos anos de abandono.

A estrada é agora mais estreita do que nunca, o asfalto subiu e os muros encolheram como prova das décadas decorridas. Na maior parte das vezes, o presente, quando se torna passado, tem esta sina de ser engolido pelo futuro.

O portão já não tem porta; o tempo fê-lo evaporar. O caminho de areia e pedras foi submerso; a teimosia da natureza inundou-o. A camioneta onde o meu avô transportara as suas obras e habilidades, já não está estacionada ao largo. Os montes de desperdício, sepulcro do trabalho do passado, escondem as formas que os meus olhos anseiam vislumbrar. O tanque de lodo alvo como neve, que tanto me fascinara em criança pelos perigos que encerrava, já não existe. Como parece já não existir a figueira que outrora fizera as honras à entrada.

- E a casinha? A casinha da oficina? Sugaram-na as décadas também? – Pergunto com saudade do tempo em que visitar o Vô Quim, no local do seu ofício, era o meu programa favorito.

- Vê! Lá ao fundo. A vegetação cresceu tanto que quase a sepultou. – Suspira a minha mãe.

E ela lá está! O tempo quase a devorou, mas ainda restam laivos de telhado e janelas aos quadradinhos, por entre os fios densos e imensos de vegetação. Ao seu lado, uma árvore gigante ergue-se a uma altura inimaginável, surreal, ao mesmo tempo que a imensa folhagem se expande iluminada pelo sol, formando um halo de luz e magia que sai de uma varinha de condão.  

É nesse momento que volto a ser criança, guiada pela grandiosa nogueira que me aguça a perceção de que a dimensão do que nos rodeia é inversamente proporcional à nossa idade. E hoje, e aqui neste lugar que parece acabado de sair do pincel do artista, tudo me parece enorme!

A tal nogueira cresceu tanto que se tornou incontáveis vezes mais alta do que a casinha; o quintal é tão amplo que parece infinito; o silêncio é tão profundo que parece que nada existe para além daquele cenário; e a saudade é tão gigante que já não se chora; já só há lugar às mais belas recordações.     

Corro em passos pequenos e saltitantes pois os pulinhos de alegria que o meu coração dá não me deixam manter os pés à mesma distância do solo. Lá ao fundo está ele. Os braços longuíssimos abertos à espera de me abraçar, as mãos enormes que não veem o momento de me rodopiar no ar, os olhos que sorriem tão intensamente que mesmo lá longe já me fazem saber o quanto ele me ama; com aquele amor especial que só os avós muito especiais nos sabem dar. Aquele amor paciente, sem pressa, que escuta e que contempla porque já sabe que o tempo não corre devagar e, por isso mesmo, os pequenos momentos têm de ser grandes.

O meu avô era o avô mais lindo que eu jamais conheci. E não era por ser o meu; até porque eu bem sei que nós achamos que os nossos são sempre os “mais-tudo”. Era porque tudo no meu avô era mesmo muito bonito! O seu porte alto, escorreito, de passo sereno mesmo quando estava apressado, de gestos brandos mesmo quando estava agitado, de voz quente mesmo quando os momentos exigiam frieza. O rosto aquilino de belas proporções, os olhos de mar e raios de sol, e os cabelos de algodão doce, sempre bem alinhados. Até as luvas e as galochas que usava no trabalho pareciam de festa quando o meu avô as envergava. As mães das minhas amigas, sempre que viam o meu avô pela primeira vez, diziam que parecia um galã do cinema dos seus tempos. E eu enchia o meu peito de orgulho porque sabia que esta seria a sua beleza maior não fora o seu supremo encanto interior tão mais arrebatador.

- Olá minha neta querida! Que bom que me vieste visitar! Como foi o teu dia de escola? – Diz-me o meu avô por entre mimos e sorrisos.

- Foi muito bom, Vô Quim. Hoje, na escola, esbocei um desenho aos quadradinhos em que estavas na oficina a fazer uma linda mesa de pedra que iria enfeitar a casa de Jesus. Foste, então, entregá-la e disseste-Lhe que era um presente feito por ti, porque querias que Ele tivesse uma mesa bonita onde pudesse escrever os desígnios do mundo. Jesus, agradecido, deu-te em troca uma vida mais longa do que a de todos os homens para que pudéssemos fazer companhia um ao outro, enquanto vivêssemos. E assim nem eu jamais teria de me despedir de ti nem tu de mim. Ainda não o acabei mas não vejo a hora de to mostrar!

O Vô Quim fitou-me emocionado, abraçou-me, e após um momento de terno silêncio disse-me:

- Sabes, minha querida? Vou decerto adorar o teu desenho quando mo mostrares, mas não sou só eu que vou ter esse presente. São todos os avós que amam e partilham com intensidade as suas vidas com os seus netos. Nunca terás de te despedir de mim nem eu de ti. Eu viverei sempre perto, mesmo quando estiver longe: umas vezes perto dos teus olhos; outras à distância do teu pensamento; e em todas dentro do teu coração.    

- Que bom, avô! – Exclamei aos pulinhos, enquanto o abraçava, como não podia deixar de ser, vinda a exclamação de uma neta tão irrequieta. - Vamos fazer qualquer coisa para festejar este momento! Vamos juntos apanhar uns figos e tu ensinas-me a abri-los. Assim, sempre que eu comer um figo vais estar perto de mim, no meu pensamento.

- Excelente ideia, minha linda! Vamos que ela deve estar desejosa de adoçar a nossa boca. – Brincou o meu avô.

E lá me vi eu de mão dada com o meu avô “mais-tudo”, até junto da figueira que naquele momento me pareceu tão pequenina que me fez voltar ao presente.

Movida pela saudade que pesa e arrasta o passo, deixo para trás a casinha, percorro os campos dançantes até à saída, passo pelas árvores carregadas de memórias, despeço-me daquele momento tão especial e sinto no coração o meu Vô Quim mais perto do que nunca.

By Dora P

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